quarta-feira, 24 de agosto de 2016

História e tradição oral em "Mistérios da noite – causos de assombração", de Cássio Gomes Lopes


Resenha escrita por Valdomiro Martins (*):


No incipiente século XX, Simões Lopes Neto publicou os primeiros clássicos de nossa literatura regional e brasileira. São relatos intimamente ligados à tradição oral da campanha gaúcha. Neto não buscava o reconhecimento nem a imortalidade do nome, mas garantir que essas “lendas” e “causos” de livros como Lendas do Sul, não se esfarelassem e fossem soprados ao infinito do esquecimento. Nessa esteira, vieram outros como Darcy Azambuja com No galpão até culminar com Érico Veríssimo com seu épico O tempo e o vento e a personificação da mulher e do homem gaúcho. E, claro, nosso caro Severino R. Moreira e os inúmeros causos irreverentes que dialogam com figuras ilustres da região, como nosso inesquecível padre Fredolin Brauner.
Um povo sem cultura é um povo sem memória, sem raízes. Nossa linguagem a reflete quase que por completo, pois em nossas palavras há marcas de nossas histórias e costumes. E quando em tempos de mundo virtual, individualidades e desfragmentação identitárias, eis que surge o livro Mistérios da noite-causos de assombração, de Cassio Gomes Lopes. Historiador de ofício, colunista e defensor do bioma pampa, Lopes tem demonstrado ser daqueles homens que levam a sério os compromissos e desafios a que se propõe. Em Mistérios da noite, não temos um livro puramente imaginário, alucinógeno onde bastaria escrever o que se compartilha com o senso comum dos jovens da atualidade. Nele, há resgate onde Lopes buscou direto nas fontes a essência do seu projeto. Como um típico jornalista investigativo, ouviu cada testemunha, mesmo que algumas não fossem diretas, não deixam de sê-lo, pois tiveram contato com as de primeiro grau e sabiam onde os fatos ocorreram. Assim, Lopes exclui sua autoria dos fatos e se posiciona como relator. E todos esses lugares foram visitados! Comprova-se a competência do historiador. Entretanto, o ponto não é discutir as veracidades das narrativas. O que nos interessa são os conteúdos contidos. Nelas há fatos inusitados que se apresentaram perante os desavisados e descrentes. Há o crânio rebelde que, por algum motivo, não permanece enterrado. Há ossos perdidos em buracos de mulitas, de quem seriam? E as luzes e bolas de fogo que circundam e desaparecem em capões de mato? Pertences alheios, cabritos intrigantes, ginetes fantasmas e outras cenas enigmáticas... a indicação de moedas enterradas, quem se atreve escavar? E confesso: a voz que diz “Não mexe no que não é teu”, arranhou-me a espinha.
“O tempo não volta”, escreve Severino na apresentação do livro de Lopes, mas podemos sim mantê-lo em diálogo especialmente íntimo. Percepções de um aroma, de uma imagem ou de histórias, como as deste livro. Suas palavras dele são correntes que nos levam e nos trazem a tempos que jamais retornam, mas sempre continuarão lá, à nossa espera. Mistérios da noite faz esse papel. Mantém firme a aliança com nossas raízes. É o barco que nos conduz no rio das lembranças, o álbum de fotografia que nos desvela o passado. Tudo por intermédio de uma linguagem que nos aproxima e nos protege, assim como faziam nossos pais, avós e antepassados à beira da cama ou do fogo, nos quartos ou nos galpões. 

(*) Valdomiro Martins nasceu em Bagé, em 1978. É professor de curso preparatório e escritor, autor de livros de contos, como “Guerrilha e solidão (Literális-2008)” e “O ruído áspero da vespa (”, novela. É formado em Letras com especializações em Literatura e História. Atualmente, frequenta o curso de mestrado em Letras, PUC-RS, na linha de escrita criativa.

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