quarta-feira, 24 de agosto de 2016

História e tradição oral em "Mistérios da noite – causos de assombração", de Cássio Gomes Lopes


Resenha escrita por Valdomiro Martins (*):


No incipiente século XX, Simões Lopes Neto publicou os primeiros clássicos de nossa literatura regional e brasileira. São relatos intimamente ligados à tradição oral da campanha gaúcha. Neto não buscava o reconhecimento nem a imortalidade do nome, mas garantir que essas “lendas” e “causos” de livros como Lendas do Sul, não se esfarelassem e fossem soprados ao infinito do esquecimento. Nessa esteira, vieram outros como Darcy Azambuja com No galpão até culminar com Érico Veríssimo com seu épico O tempo e o vento e a personificação da mulher e do homem gaúcho. E, claro, nosso caro Severino R. Moreira e os inúmeros causos irreverentes que dialogam com figuras ilustres da região, como nosso inesquecível padre Fredolin Brauner.
Um povo sem cultura é um povo sem memória, sem raízes. Nossa linguagem a reflete quase que por completo, pois em nossas palavras há marcas de nossas histórias e costumes. E quando em tempos de mundo virtual, individualidades e desfragmentação identitárias, eis que surge o livro Mistérios da noite-causos de assombração, de Cassio Gomes Lopes. Historiador de ofício, colunista e defensor do bioma pampa, Lopes tem demonstrado ser daqueles homens que levam a sério os compromissos e desafios a que se propõe. Em Mistérios da noite, não temos um livro puramente imaginário, alucinógeno onde bastaria escrever o que se compartilha com o senso comum dos jovens da atualidade. Nele, há resgate onde Lopes buscou direto nas fontes a essência do seu projeto. Como um típico jornalista investigativo, ouviu cada testemunha, mesmo que algumas não fossem diretas, não deixam de sê-lo, pois tiveram contato com as de primeiro grau e sabiam onde os fatos ocorreram. Assim, Lopes exclui sua autoria dos fatos e se posiciona como relator. E todos esses lugares foram visitados! Comprova-se a competência do historiador. Entretanto, o ponto não é discutir as veracidades das narrativas. O que nos interessa são os conteúdos contidos. Nelas há fatos inusitados que se apresentaram perante os desavisados e descrentes. Há o crânio rebelde que, por algum motivo, não permanece enterrado. Há ossos perdidos em buracos de mulitas, de quem seriam? E as luzes e bolas de fogo que circundam e desaparecem em capões de mato? Pertences alheios, cabritos intrigantes, ginetes fantasmas e outras cenas enigmáticas... a indicação de moedas enterradas, quem se atreve escavar? E confesso: a voz que diz “Não mexe no que não é teu”, arranhou-me a espinha.
“O tempo não volta”, escreve Severino na apresentação do livro de Lopes, mas podemos sim mantê-lo em diálogo especialmente íntimo. Percepções de um aroma, de uma imagem ou de histórias, como as deste livro. Suas palavras dele são correntes que nos levam e nos trazem a tempos que jamais retornam, mas sempre continuarão lá, à nossa espera. Mistérios da noite faz esse papel. Mantém firme a aliança com nossas raízes. É o barco que nos conduz no rio das lembranças, o álbum de fotografia que nos desvela o passado. Tudo por intermédio de uma linguagem que nos aproxima e nos protege, assim como faziam nossos pais, avós e antepassados à beira da cama ou do fogo, nos quartos ou nos galpões. 

(*) Valdomiro Martins nasceu em Bagé, em 1978. É professor de curso preparatório e escritor, autor de livros de contos, como “Guerrilha e solidão (Literális-2008)” e “O ruído áspero da vespa (”, novela. É formado em Letras com especializações em Literatura e História. Atualmente, frequenta o curso de mestrado em Letras, PUC-RS, na linha de escrita criativa.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O DUELO DO COMBATE DAS TRAÍRAS

A Revolução Federalista de 1893 foi uma das mais violentas da América, com episódios que ressaltam o valor e o destemor das legiões envolvidas. Um deles foi o que aconteceu em 6 de novembro de 1894, no município de Bagé, próximo ao Arroio das Traíras, no distrito de Palmas.
Surpreendido com 230 soldados em campo aberto, numa coxilha de um quilômetro de extensão, reta como uma gigantesca mesa de bilhar, o tenente-coronel Cypriano Ferreira, legalista, resolve adotar o quadrado inglês de infantaria para enfrentar os 450 maragatos de cavalaria, comandados por José Bonifácio da Silva Tavares, “Zeca Tavares”, começando a luta sobre a referida coxilha.
A cavalaria maragata é intrépida e, não menos bizarra, a infantaria legalista.
Os quadrados ingleses dos pica-paus quase não resistiam às repetidas cargas de cavalaria, investidas impetuosamente, pela ousadia dos maragatos, com grandes perdas de lado a lado. Para resistirem, começaram a recuar em direção à casa da estância de Antônio Vieira, a pouco mais de um quilômetro da mencionada coxilha. Na retirada estratégica dos quadrados, intensificaram-se as cargas revolucionárias e, os corpos abatidos pelas lanças eram, imediatamente, substituídos, mantendo-se intacta a integridade dos quadrados.
Ao entrincheirarem-se na casa, o combate se intensifica de tal forma que os combatentes se lanceiam através de portas e janelas e, naquele alarido infernal do “bate-boca atrevido dos facões”, quando se batiam com o mais denodado valor e com cego fanatismo, alguém, pica-pau ou maragato; aquele, de dentro da casa e este, no pátio da estância desafia para uma peleia corpo a corpo.
Todos os conflitos de gaúchos aconteciam com a arma branca e, de ordinário, submetidos a certos códigos de honra e sem interferência de parceiros ou estranhos. Assim, por um instante, cessa o combate e todos se concentram no espetáculo que está por acontecer.
O capitão maragato de sobrenome Sagaz, de lança, e o alferes pica-pau, Manuel Lourenço, de sabre, se jogam ao pátio da estância e, estão frente a frente, negaceando-se e brandindo as armas com prodigioso e sinistro malabarismo, enquanto espiam, com olhos felinos, o menor descuido do adversário para buscar um espaço favorável na peleia.
O choque de seus “talheres”, enerva os expectadores com sua estranha voluptuosidade. Na refrega buscam inspiração de uma manobra para vencer o rival e zeloso competidor da fama e da glória.
Ambos, postados em guarda ou no ataque, mantinham a elegância de uma postura varonil, sem perder a harmonia de homem valoroso ao retroceder sem fugir do combate.
Os dois, com bravura sem limites, se matam, retalhando-se horrivelmente, com a altivez crioula que os conduziu, irremediavelmente, para a morte ! Morreram, com a morte merecida, com a morte dos guapos, como centauros invictos !

Fonte: LOPES, João Máximo. “Habilidades Campeira nas Guerras do Sul”, Camaquã, Núcleo de Pesquisas Históricas de Camaquã, 2012. 125 p.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

GAÚCHOS QUE REJEITARAM O BARONATO


O costume de conceder títulos de nobreza, no Império do Brasil, tem origem na herança cultural e política de Portugal. Reis de Portugal, desde o século XV, premiavam com títulos e comendas os que auxiliaram o governo de alguma forma. Foram agraciados, por exemplo, os que lutaram pelo rei na expansão das conquistas portuguesas na África e na Ásia. A maioria dos nobres lusitanos da época vivia com rendimentos fornecidos pela Coroa portuguesa ou com a liberação do pagamento de taxas e impostos para suas atividades. Eram as “benesses”, as “mercês”.
A monarquia do Brasil, com D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II, adotou prática similar, concedendo títulos de forma a conseguir apoio e aliados. Só que a situação era um tanto diferente, pois os nobres recém-agraciados tinham outra ocupação: não eram guerreiros, mas homens ricos, que viam o título como prestígio social. No Brasil, para que um filho ou herdeiro recebesse o título do pai, teria de pedir novamente ao imperador, que poderia, ou não, concedê-lo. A nobreza não foi, em nenhum momento,  hereditária. Essa troca de favores entre os imperadores do Brasil e os produtores enriquecidos ajudou a monarquia a se manter no Brasil por 67 anos.
D. João VI concedeu, entre 1808 e 1821, 119 títulos; o imperador D. Pedro I, 134, entre 1822 e 1831; D. Pedro II foi o mais disposto a agradar, distribuindo 1 065 títulos de 1841 a 1889. O título de barão estava reservado, desde a época de D. João, aos proprietários rurais que se projetavam por sua riqueza, mas não por suas participações nos altos postos do governo do império. Títulos mais elevados, como os de conde e marquês, estavam destinados aos que compunham a elite política imperial.  Durante o império, o título mais concedido no Brasil foi o de barão. Os títulos brasileiros, em geral, estão relacionados com batalhas, cidades, sobrenomes, nomes de fazendas e acidentes geográficos.  Para a maioria, receber um título de nobreza era uma honraria inegável, mas não para os gaúchos Gumercindo Saraiva e José Gomes Portinho. O primeiro recebeu um emissário de confiança de Dom Pedro II para oferecer-lhe o título nobiliárquico de “Barão de Santa Vitória”, que não o aceita. Não se sabe as razões por que recusa, porém, alguns pesquisadores e historiadores acreditam que, a hipótese mais provável, seja por ideal.  O segundo, por sua vez, recusa o título com que foi agraciado, de “Barão de Cruz Alta”, respondendo, de seu próprio punho, com a seguinte declaração: “Não aceitei o baronato. Se existe o presente título em meu poder, é porque me foi mandado de presente pelo meu amigo Visconde de Pelotas, pedindo-me que o aceitasse e fizesse dele o uso que entendesse, porém, não o devolvesse. Por essa razão guardei-o, inutilizando-o e rasgando-o e lavrando a presente declaração, para que em todo o tempo conste as razões que me assistem para recusar, são muitas, as quais julgo desnecessário especificar. Porto Alegre, 16 de Setembro de 1879 – José Gomes Portinho”. 

Fontes:
1 Organizador: Figueiredo, Luciano. “História do Brasil para ocupados: os mais importantes historiadores apresentam de um jeito original os episódios decisivos e os personagens fascinantes que fizeram o nosso país.”, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013. 504 p.
2 Bellomo, Harry Rodrigues. “Os Barões Assinalados – A presença da realeza e da nobrena no Rio Grande do Sul”, Porto Alegre, Martins Livreiro, 1999, 76 p.
3 Dornelles, Sejanes. “Gumersindo Saraiva – O guerrilheiro pampeno”, Caxias do Sul, EDUCS, 1988. 248 p. 
4 Clemenciano Barnasque. “Ephemerides Rio-grandenses”, Porto Alegre, Selbach, 1931.350 p.


LIXIGUANA E SUAS SINGULARIDADES

Lixiguana/Lechiguana/Lichiguana é uma espécie de vespa, que produz mel muito saboroso por ser mais suave do que mel de abelha. Constroem suas colmeias em arbustos de pequeno porte (xirca) em campo aberto, em matos (farelenta) e forros de residências. Sua "casa", geralmente em formato oval, é lisa, diferentemente do camoatim que é cônica e possui saliências em forma de “bicos”.
Em alusão à existência em grande quantidade dessa vespa, comum da campanha gaúcha, foi denominado um arroio afluente do rio Camaquã e uma localidade no distrito de Palmas, interior de Bagé. Segundo o “Diccionario de Quichua de Domingo Bravo”, “lachiguana” es un sustantivo que designa una "colmena aerea suspendida”.
À margem direita do referido arroio, situa-se a sede da antiga Estância do Sobrado, que foi construída em 1801, por Laurindo Teixeira Brasil. Ao norte da casa principal, existe um relógio de sol, confeccionado pelo engenheiro alemão, Augusto Alberto Stuky. Ele foi o agrimensor que fez o primeiro nivelamento e alinhamento das ruas de Bagé, cujo plano de urbanização foi assinado em ofício de 10/10/1881. Mais tarde, passou uma longa temporada nas Palmas, principalmente nas fazendas dos Collares. Como prova disso, temos o inusitado relógio de sol, que permanece sempre fiel ao passar do tempo. Para transcrevê-lo, basta dizer que é um quadrado de pedra argilosa, da mesma pedra com que foram construídas as calçadas do velho solar; possui uma haste de ferro no centro, chamada de gnômon, que é um ponteiro do relógio solar; essa haste é ajustada segundo a latitude do local, apontando para o polo celeste acima do horizonte; a luz solar faz com que a sombra do gnômon descreva um semi-eclipse no mostrador graduado, que é dividido em vinte e quatro partes iguais, ou seja, nas doze horas do dia. Os algarismos em caracteres romanos são dispostos de maneira inversa à dos relógios mecânicos, de forma que os horários matutinos ficam à direita do observador e os vespertinos à esquerda. 
Também nessa localidade, ocorreu o primeiro disparo ou teste de foguetes realizado pelo exército brasileiro, no dia 7 de fevereiro de 1827. Nessa data, o tenente alemão Luiwig August Siegner; a serviço do exército brasileiro estacionado em Bagé, durante a Guerra da Cisplatina (1825/1828), realizou vários testes com o que era, então, considerada uma nova arma de guerra. Lamentavelmente, num dos tantos disparos experimentais de foguetes ocorridos em Bagé, naquela data, o militar inventor feriu-se, vindo a falecer dois dias após, na cidade de Caçapava do Sul, local a que havia sido conduzido para receber o necessário tratamento de saúde.
Em homenagem e reconhecimento ao esforço do tenente Siegner, a Avibrás Indústria Aereoespacial S.A ergueu um monumento localizado em frente ao ginásio esportivo Presidente Médici (Militão) que reproduz um foguete, no qual se encontra uma placa de bronze que descreve o acontecimento e seu pioneirismo.

Fontes:
1 Oliveira, Cândido Pires de. “Alma, Terra e Sangue – Fragmentos da História das Palmas, Bagé”, Bagé, 2011. 260 p. 
2 Lemieszek Claudio de Leão e Elida Garcia “Primazias de Bagé – Um Guia Incompleto”, Bagé, EDIURCAMP, 2013, 158 p.

BONEVAL COPA DO MUNDO

Adão Cavalheiro Maurente nasceu no início da década de 1940, nos Olhos D’água, próximo ao Corredor do “Tata”, interior de Bagé. Filho de Iracema Cavalheiro Maurente e Francisco Donzel Maurente, conhecido como “Cabo Maurente”. Entre a infância e adolescência adotou o apelido de “Boneval”, em homenagem a um militar de mesmo nome a quem admirava. Logo cedo começou a trabalhar nas estâncias da região da Bolena, Palmas, Tunas, Baú. Por não ficar muito tempo em um lugar só, ganhou o apelido de “Copa do Mundo”.
Nas marcações e rodeios destacava-se pelo seu porte físico, destreza e força com os animais. Nesses eventos, costumava apertar os terneiros de ano solito e também sujeitava as vacas mais gordas do rodeio segurando as mesmas por uma das patas traseiras. E nas comparsas de esquila carregava as bolsas de lã no ombro como fossem sacos de batata.
Nas suas horas de folga gostava de frequentar carreiras de cancha reta. E foi numa penca na cancha anexa ao bolicho de Maurício Campos, na Bolena, que Boneval, até então um individuo pacato, se rebelou e reagiu à provocação de um “guampa torta”, dando-lhe uma “baita sumanta”. A partir desse momento, passou a ficar conhecido e cada duelo que vencia, mais aumentava sua fama. No entanto, não era de puxar briga, só quando era desafiado. Na época, muitas pessoas, por causa de sua fama, ao saber que se aproximava, ficavam com medo. Mas se preocupavam em vão, pois Boneval, por onde passava deixava saudade, pela sua camaradagem, serventia e humildade. Certa feita, na Chácara da Cortiçeira, na Bolena, Ângela Campos, na época com oito anos, foi passear na casa de sua madrinha distante dois quilômetros. Quando estava retornando acompanhada de mais três pessoas, foram surpreendidos por uma tormenta de verão e quando chegou em casa, foi Boneval quem a ajudou descer do cavalo.
Outra coisa que adorava fazer era caçar tatu e mulita, com os quais presenteava os amigos da cidade. Aliás, quando vinha à cidade, costumava frequentar os seguintes bares:
• Cimirro, no Povo Novo (atual São Pedro);
• Júlio Campos, no bairro São Jorge, quase Laranjeiras;
• Margarida, no Bairro São Martim.
Neste último, meteu um baita bochincho e foi acionado o policiamento, que na época era misto. A primeira a chegar foi a Polícia Civil, composta pelo Inspetor Piançu e mais três policiais que não conseguiram retirar Boneval do recinto. Então, chegou o reforço da brigada militar e, quando todos pensavam o pior, Boneval, ao ver o sargento Távora, o abraçou chorando e se entregou.
Também na cidade, volta e meia se enfurnava nos cabarés da baixada, entre eles o “Pai Faca” e Acúrcio. Neste, um individuo lhe deu um tapa no seu rosto, o qual revidou, montando no ombro do homem e puxando violentamente seus cabelos e só o soltou no reflexo depois que queimaram seu braço com cigarro. E foi num desses cabarés que Boneval arrumou enrosco com uma mulher de apelido “Sarará”, com a qual teve um filho por codinome “Diabo Loiro”.
Assim era a vida de Boneval, entre o campo e a cidade, até que, após um dia inteiro de bebedices no bolicho do Maurício Campos, na Bolena, foi surpreendido por dois indivíduos no retorno para as casas. Já era noite e os homens aproveitaram um momento de descuido de Boneval e lhe golpearam a nuca com um mangaço. Desacordado, Boneval foi colocado num baixo da estrada e coberto por pelegos. Algum tempo depois, um estancieiro, por acidente acabou passando de jipe por cima de Boneval. Quando percebeu o fato, parou e foi verificar o que era aquilo e ficou surpreso ao encontrar seu ex-peão desacordado. De pronto o socorreu e o levou imediatamente para a Santa Casa de Bagé e pediu para que os médicos fizessem de tudo para salvar aquela vida. Mas não adiantou e Boneval acabou falecendo oito dias após. Depois do velório, o corpo de Boneval foi levado num caminhão verde até o Cemitério do Palmito, próximo ao Passo dos Perez, nos Olhos D’água, por volta das 11h da manhã, onde foi sepultado na presença de pouquíssimas pessoas.
Faz mais de trinta anos que Boneval se foi, mas sua história permanece bem viva na memória de várias pessoas que o conheceram e foi eternizada nos versos do professor e poeta Diogo Corrêa, através da música “Boneval: O Tal Copa do Mundo”,  que concorreu a 2ª Galponeira de Bagé, no ano de 2005.

FONTES: Lopes, Cássio Gomes e Lucas, Edgard Lopes. “A Rainha da Fronteira – Fragmentos da História de Bagé”, Bagé, Pallotti, 2015. 183 p.

O MISTÉRIO DA PEDRA DA ESQUINA DAS RUAS GENERAL OSÓRIO E DR. PENA

Assim como no poema de Carlos Drummond de Andrade, temos, em nossa cidade, uma pedra na esquina da avenida General Osório com a rua Dr. Penna, que, além de despertar a curiosidade, transformou-se num mistério ao longo dos anos.
Bagé ainda era uma vila e, já na primeira metade do Século XIX, ocorreram quatro estremecimentos e conflitos internacionais que a atingiram: em 1801, a tomada pelos portugueses de boa parte do Rio Grande do Sul que, pelo Tratado de Santo Ildefonso (1777), era ocupado pelos espanhóis; entre 1811/1812, a intervenção de Dom Diogo de Souza na Banda Oriental, inserindo-se, aqui, a fundação de Bagé (17 de julho de 1811); entre 1816/1820, as campanhas contra José Gervásio Artigas e, culminando, entre 1825/1828, com a Guerra Cisplatina e, nela, a invasão argentina no Brasil. Sem contar os graves reflexos advindos da chamada ‘Guerra Grande’, no Uruguai, entre 1843/1851, que irá findar depois de Oribe refugiar-se em Buenos Aires e os brasileiros aliarem-se aos ‘colorados’.
O Império brasileiro além de marcar seu território, por estratégia política e militar, deveria cercar-se dos meios de proteger sua população, embora, desde 1819, a fronteira estivesse estabelecida para com a Banda Oriental e ajustada em vários momentos seguintes até 1862, com a colocação do último marco na dita ‘Ilha Brasileira’ no rio Uruguai.
Referimo-nos à medição de limites com o Uruguai, para que não se confunda com o reconhecimento de território. É que, em 20 de novembro de 1848, o Ministério dos Negócios do Império, através de José da Costa Carvalho (o Visconde de Mont’alegre), manda Cândido Baptista de Oliveira, gaúcho nascido em Porto Alegre, proceder “...ao reconhecimento topográfico dos mais importantes pontos da fronteira da Província de São Pedro entre o oceano e o Rio Uruguai...”. No mesmo momento, nomeado o capitão-tenente da Marinha, Joaquim Raymundo Delamare (ou de Lamare), para auxiliá-lo na tarefa.
Por meio de observações astronômicas passaram a realizar medições para acharem as coordenadas médias dessa vila, assim como fizeram noutros pontos da província. Esses observadores vieram de Jaguarão, atravessando as coxilhas, rios e arroios.
Tendo Cândido Oliveira escrito uma obra em forma de "memória" que intitulou “Reconhecimento topográfico da fronteira do Império, na Província de S. Pedro”, editada no Rio de Janeiro em 1850, ali registrou: “Em um local mui próximo da Igreja Matriz de Bagé, fizeram-se as observações precisas para determinar a posição geográfica da vila”. O conselheiro Cândido Oliveira e sua comissão de observação ficaram na nossa vila até 10 de março de 1849, quando saiu “escoltado por seis praças do 2º Regimento de Cavalaria, sob o comando do tenente Antero de Oliveira Fagundes... com destino à Vila de S. Gabriel...”.
O tenente-coronel Manoel Luis Osório, nesse ano, no lugar ‘Tapera de Trilha’, em São Gabriel, não só soube do propósito do conselheiro do Império, como lhe forneceu os meios logísticos para seguir viagem. A história ainda dirá que os dois foram amigos cordiais, a ponto de Osório, em 1859, na viagem à capital do Império, Rio de Janeiro, hospedar-se em sua casa.
Dita comissão de reconhecimento da fronteira do Império, chegou a Bagé no dia 6 de março de 1849. Após também visitar Cachoeira, Rio Pardo e Triunfo, chega a Porto Alegre, onde dá por encerrado o intento sem alcançar o objetivo maior, que era traçar os pontos geográficos até o rio Uruguai, no extremo oeste desta província, como a seguir transcrevemos.
No mesmo apontamento de sua obra, Cândido Oliveira confessa: “Não havendo prosseguido no reconhecimento topográfico da fronteira, além da Vila de Bagé, pelos motivos expostos ao Excelentíssimo senhor ministro dos Negócios do Império; devo por aqui termo a primeira parte da presente memória". Datado de 10 de janeiro de 1850, o documento é endereçado ao mesmo Ministério dos Negócios do Império, na pessoa de José da Costa Carvalho, o Visconde de Mont’alegre, que outrora lhe deu essa missão:
“Pela leitura desta memória será V. Ex. circunstanciadamente informado acerca do que diz respeito à parte da fronteira, que vai do Oceano até as cabeceiras do Rio Negro, na vizinhança da Vila de Bagé: não havendo eu prosseguido no reconhecimento da outra parte da dita fronteira, que termina no Uruguai [o rio], em razão de não me chegarem a tempo as ordens, que esperava da Repartição da Guerra, para que o presidente da Província de S. Pedro me prestasse os auxílios de que carecia, para levar a efeito esse desígnio, visto haver-se ele negado a satisfazer as requisições que lhe fizera a tal respeito, como em tempo competente informei a vossa excelência”.
O tenente-coronel Osório, como frisamos, amigo do Conselheiro Cândido Oliveira, fora deputado provincial eleito em 1846. Além de militar, portanto, é sabedor das necessidades estratégicas da província e, quando reescalado de São Gabriel para Bagé, em julho de 1850, com seu regimento, confronta-se com uma situação geral de pé de guerra. Em Bagé, dito regimento de Osório, ficaria até 28 de março de 1851, quando então retorna a São Gabriel.
Porém, não devemos esquecer as “Califórnias de Chico Pedro”, apelido de Francisco Pedro de Abreu, o ‘Barão do Jacuí’, o mesmo “Moringue” da Revolução Farroupilha, que em 26 de dezembro de 1849 conclamou uma reação àquela ameaça fronteiriça, findada em abril de 1850. Osório, por sua vez, tinha saído ao encalce de Chico Pedro e seus apoiadores na fronteira de Bagé até o acordo com o novo presidente da Província de São Pedro, José Antônio Pimenta Bueno, que em 7 de maio de 1850 comunicou a pacificação às demais províncias do Império.
Não encontramos ocasião mais propícia ao assentamento do marco de pedra, senão nesse período de Osório em Bagé, compreendido entre julho de 1850 e março de 1851, em homenagem ao amigo Conselheiro Cândido Baptista de Oliveira ou atendendo a sugestão, justamente ali onde os trabalhos de reconhecimento da fronteira do Império foram suspensos, já que tomaram o retorno sem ultrapassar o rio Negro.
Passados tão somente três anos dessa visita científica à Bagé, o Império do Brasil atingia seu apogeu, coincidindo com a valorosa Batalha dos Santos Lugares ou Monte Caseros, nos arredores de Buenos Aires, em 3 de fevereiro de 1852, fato que pôs fim à guerra contra Oribe e Rosas, permitindo ao Uruguai e Argentina livrarem-se dos dois ditadores.
Os comentários acima são importantes, já que entre o término das “Califórnias” de Chico Pedro e essa marcha internacional contra Oribe e Rosas, encontra-se em Bagé o ambiente oportuno para erguer-se dito marco de pedra, ou melhor dizendo: "O Marco Desconhecido do Reconhecimento da Fronteira do Império", como abordamos  no livro A Rainha da Fronteira- Fragmentos da História de Bagé. Talvez mais uma façanha do já legendário Manoel Luís Osório.

*Coautoria deste texto: Edgard Lopes Lucas 

ANNA: A GRANDE PAIXÃO DE OSÓRIO

Quando, em 1828, Osório estava servindo como 2º tenente no 5° Regimento de Cavalaria em Rio Pardo, criado como “Dragões do Rio Grande do Sul”, mas que se consagrou na história como “Dragões do Rio Pardo”. Houve durante uma parada, um desfile militar, que impressionava e atraía a admiração da população da Vila de Rio Pardo.
Os jovens oficiais encantavam com sua farda azul: túnicas com dragonas, fechada por um carreiro de botões numa faixa amarela, assim como os punhos; calções até os joelhos, botas polidas, espadim ao lado, capacete adornado de um penacho do qual saía o cabelo comprido, amarrado por uma fita. Eram moços ardorosos, elegantes, faceiros, determinados a morrerem pelo seu Deus, pela Pátria e por sua amada. Foi esse o  ambiente que Osório encontrou em meio à oficialidade solteira, precedido pela fama de herói de vários combates e de uma batalha. Destacava-se ainda, pela elegância do seu porte másculo, atraente e persuasivo, com sua veia poética brotando liricamente do seu cérebro privilegiado.
Vivia Rio Pardo suas horas de ufania, horas de evocações gloriosas. Dizia o dragão: “Tudo aqui é velha história, poeira de mortos que o nosso pé levanta em cada passo”.
Assim era Rio Pardo, “Ninho de Águias”. Primeira praça militar do interior do Rio Grande do Sul, berço histórico das tradicionais famílias rio-grandenses.
Chegou o dia da grande parada militar. De súbito ouve-se o toque de cornetas, o rufar dos tambores, o som ecoante dos sinos da Igreja Nossa Senhora do Rosário. Eis que surge o esquadrão de lanceiros, conduzindo suas bandeirolas tremulantes como um “bando de borboletas vermelhas”, refletindo ao sol, avançando num trepidar de cascos, num palpitar de crinas. A multidão emocionada explodiu de admiração e lenços esvoaçaram, drapejando, numa demonstração de orgulho pátrio aos dragões que passavam, garbosos, no seu fardamento de cores vivas, fisionomias queimadas, destros nas selas.
Ali, vinha o tenente Osório, o jovem guerreiro, estampa hercúlea, expressão serena, aberto de placidez e bondade. Sobressaía-se majestoso, pela sua jovialidade dos 20 anos. Cavalo e cavaleiro, numa atitude airosa, galhardo, expandindo júbilo de orgulho jovial.  Anna penetra na sua alma jogando-lhe uma flor que trazia no bico do pequeno decote. Para ela, o moço ambicionaria amor. Anna estava toda vestida de branco, e Osório prendeu sua imagem suave, num relampejar de olhos: esbelta, risonha, beleza incomparável, olhos negros, transluzentes, bailando na retina.
Passou o desfile dos bravos, expoentes da varonilidade da Pátria, acolhidos com ovações entusiásticas pela multidão que aplaudia os estandartes dos dragões em desfile memorável.
O tenente Osório guardara as feições daquela jovem de atraente formosura que enlaçara seu coração à primeira vista. Para ele, a joia de Rio Pardo.
E aconteceu o baile animado desde o primeiro momento e dançavam, aos sons dos instrumentos, as mazurcas tremidas, as havaneiras balanceadas, as polcas de relação, as polcas de damas e o ritmo das valsas em espiral volteavam e rodopiavam os pares.
Osório dançava com Anna. Esse era seu nome, coincidentemente, o nome da sua mãe. Dançavam de par efetivo, ela,  com seus 17 anos, airosa e leve como uma pluma. Viviam os dois o seu primeiro amor. À meia-noite, como de costume as moças mudavam de vestidos, moda que chegou até os anos de 1930/40.
Presente ao baile, o Marechal de Campo, Sebastião Barreto Pereira Pinto, comandante das armas, herói da Batalha do Passo do Rosário e padrinho de Anna.
A paixão invadiu e tomou conta dos corações daqueles jovens. Mais, era um deslumbramento aquele amor, um desabrochar inquietante de um sentimento espontâneo e sério. Osório e Anna se amavam verdadeiramente. 
Osório e Anna se amavam verdadeiramente. Mas os seus pais não faziam gosto e proibiram-na de se encontrar com Osório. Em vão. Não permitiria - diziam - que um tenente que só ganhava 25 $000 mil réis pudesse casar com sua filha de família abastada. Se ela insistisse, eles conseguiram que seu padrinho, comandante das Armas, destacasse Osório para bem longe, na fronteira.
Fora, então, o tenente Manoel Luís Osório transferido para um ponto de guarda na fronteira de Quaraim. Todavia, a grande paixão e o pesar de perder seu grande amor, afloraram em sua poesia, que a chamou “Lília”, deixando-lhe de despedida, estes versos:

“Por entre o fado escuro,
Que a minha paixão se lança.
Eu vou perdendo a esperança
Entre as sombras do futuro:
Constância, ó Lilia, eu te juro
Mas fora melhor não ver-te,
Quisera não conhecer-te,
Por ti não sentir paixão,
Porque no meu coração,
Já sinto a dor de perder-te”.

O tenente Osório no seu destacamento solitário de Quaraim, (Barra de Quarai) continuava a escrever para a sua Lília. Na casa desta, em Rio Pardo, uma escrava mexendo nas gavetas do seu toucador encontrou as cartas, levando ao conhecimento do seu senhor. Como eram pais possessivos trataram logo de fazê-la casar com um parente endinheirado. E, quando algum amigo íntimo tentava interceder em defesa de Anna, eles respondiam: -“Queremos que Anna se case bem. O que lhe pode dar esse tenente Osório? Martírio e pobreza. Lucro único que aufere a mulher que casa com soldado. Mandaram-lhe fazer um enxoval luxuoso com a intenção de satisfazer sua vaidade e apresentá-la à sociedade com o mais apurado requinte”.
Osório desolado, no seu posto longínquo, dava evasão à saudade, escrevendo poesia à sua Lília:

"Perde o tempo à negra ausência
Trabalha o ciúme em vão;
Não há tormento que apague
A minha ardente paixão”.

Passaram-se os meses e o tenente Osório não recebia notícias de Anna. Sentado à porta do seu rancho de palha, viu um vulto se aproximar a cavalo. Ao chegar, ficou sabendo tratar-se de um chasque enviado por sua apaixonada. O próprio passou-lhe às mãos uma carta, que trazia enrolada em panos. Osório abriu-a e leu. Era de Anna. Nessa missiva, ela narrava às peripécias que estava vivendo, obrigada a casar com quem não amava, que só ia lhe trazer infelicidade e terminava suplicando-lhe:
“Se me amas, vem buscar-me; fugirei contigo. Acompanhar-te-hei para qualquer parte do mundo. Não tenho outro meio de evitar essa violência que me parece realizar-se de um momento para outro. Atende. Não demores. Não demores que podes chegar tarde. Ou o teu amor, ou a morte por quem chamo todos os dias, no meio das muitas desventuras”.
Ao terminar a leitura, Osório observou que a data estava atrasada de mais de mês. Perguntou ao portador a razão da demora. Explicou que adoecera no caminho pelas alturas da atual Cacequi; e como trazia ordem de entregá-la pessoalmente, teve de esperar melhorar sua saúde.
Osório tinha a percepção aguçada e logo lhe veio o pressentimento que chegaria atrasado ao chamamento de Anna. Na mesma tarde, fez voltar o portador com uma carta avisando-lhe que o esperasse, incluindo a poesia abaixo:

“Aperta amorosos laços
Em vez de chamar a morte,
Muda a minha infeliz sorte.
Chama teu bem, dá-lhe os braços”.

Mas não se conteve. Passou o comando do pelotão ao seu substituto e seguiu para Rio Pardo, acompanhado por dois soldados levando cavalos de muda. Não se enganara. Chegara tarde. Anna, sua Lília querida estava casada. Frustrado e triste regressou ao seu posto, curtindo sua dor, a pior, aquela que lanha a alma com a lâmina do amor ferido.
Anna durou poucos anos. Quando lhe foram amortalhar, descobriram uma tatuagem na epiderme do lado do coração, feita por uma sua mucama com as inicias: ML.

FONTES:Figueiredo, Osório Santana. “General Osório – O Perfil do Homem”, São Gabriel, Pallotti, 2008. 216 p.



UMA BARONESA INTERNACIONAL

Morei anos em Candiota e sempre fui ligado ao meio rural. Quando me mudei para Bagé, ouvi falar de uma fazenda com o nome bastante curioso: “Estância da Baronesa”. Comecei, então, um longo processo de investigação, que se estendeu por mais de nove anos, quando dezenas de pessoas foram entrevistadas. Mas foi somente em 2014 que descobri elementos mais concretos sobre o tema. Primeiramente, soube que não existe somente uma, mas duas propriedades com esse nome; uma situada na margem direita do Arroio São Luis, no território Uruguaio “La Baronesa de San Luis” e outra no Ponche Verde, interior de Dom Pedrito. Consultando o livro “Antigas Fazenda do Rio Grande do Sul”,  de Lourdes Noronha Pinto, descobri que a última fazenda se chama, na realidade, “Estância São Luís” e que, nos primórdios, era de propriedade de Leopoldo Antunes Maciel, bacharel pela faculdade de Direito de São Paulo, presidente da Câmara Municipal em Pelotas, presidente do Centro Abolicionista de São Paulo, vice-presidente da Província do Rio Grande do Sul e comandante superior da Guarda Nacional. Pelos seus serviços prestados ao Império ganhou o título de barão de São Luís, por decreto de 5 de julho de 1884. Através de Leopoldo, cheguei a meu objetivo: a baronesa de São Luis. Trata-se de Cândida Gonçalves Moreira, que passou a honrar o titulo quando contraiu matrimônio com o referido barão, em 7 de abril de 1874. Dessa união, nasceram 11 filhos. Depois do falecimento de Leopoldo, em 5 de maio de 1904, Cândida teve que conciliar, por 30 anos, a criação dos filhos, com a administração de uma casa em Pelotas e duas estâncias, uma no Uruguai e outra no Brasil. Quando estava nesta última, as pessoas, ao invés de dizer: “Vamos à Estância São Luís visitar a Cândida”, assim se referiam: “Vamos lá ver a baronesa, vamos visitar a baronesa, vamos à baronesa”. E foi assim que Cândida influenciou na toponímia pedritense e uruguaia. A baronesa de São Luís morreu em 13 de agosto de 1922, com 68 anos de idade.

Fontes: Lopes, Cássio Gomes e Lucas, Edgard Lopes. “A Rainha da Fronteira – Fragmentos da História de Bagé”, Bagé, Pallotti, 2015. 183 pág.