Resenha escrita por Valdomiro Martins (*):
No incipiente século
XX, Simões Lopes Neto publicou os primeiros clássicos de nossa literatura
regional e brasileira. São relatos intimamente ligados à tradição oral da
campanha gaúcha. Neto não buscava o reconhecimento nem a imortalidade do nome,
mas garantir que essas “lendas” e “causos” de livros como Lendas do Sul, não se esfarelassem e fossem soprados ao infinito do
esquecimento. Nessa esteira, vieram outros como Darcy Azambuja com No galpão até culminar com Érico
Veríssimo com seu épico O tempo e o vento
e a personificação da mulher e do homem gaúcho. E, claro, nosso caro Severino
R. Moreira e os inúmeros causos irreverentes que dialogam com figuras ilustres
da região, como nosso inesquecível padre Fredolin Brauner.
Um povo sem cultura é
um povo sem memória, sem raízes. Nossa linguagem a reflete quase que por
completo, pois em nossas palavras há marcas de nossas histórias e costumes. E
quando em tempos de mundo virtual, individualidades e desfragmentação
identitárias, eis que surge o livro Mistérios
da noite-causos de assombração, de Cassio Gomes Lopes. Historiador de
ofício, colunista e defensor do bioma pampa, Lopes tem demonstrado ser daqueles
homens que levam a sério os compromissos e desafios a que se propõe. Em Mistérios da noite, não temos um livro
puramente imaginário, alucinógeno onde bastaria escrever o que se compartilha
com o senso comum dos jovens da atualidade. Nele, há resgate onde Lopes buscou direto
nas fontes a essência do seu projeto. Como um típico jornalista investigativo,
ouviu cada testemunha, mesmo que algumas não fossem diretas, não deixam de
sê-lo, pois tiveram contato com as de primeiro grau e sabiam onde os fatos
ocorreram. Assim, Lopes exclui sua autoria dos fatos e se posiciona como
relator. E todos esses lugares foram visitados! Comprova-se a competência do
historiador. Entretanto, o ponto não é discutir as veracidades das narrativas.
O que nos interessa são os conteúdos contidos. Nelas há fatos inusitados que se
apresentaram perante os desavisados e descrentes. Há o crânio rebelde que, por
algum motivo, não permanece enterrado. Há ossos perdidos em buracos de mulitas,
de quem seriam? E as luzes e bolas de fogo que circundam e desaparecem em
capões de mato? Pertences alheios, cabritos intrigantes, ginetes fantasmas e
outras cenas enigmáticas... a indicação de moedas enterradas, quem se atreve
escavar? E confesso: a voz que diz “Não mexe no que não é teu”, arranhou-me a espinha.
“O tempo não volta”,
escreve Severino na apresentação do livro de Lopes, mas podemos sim mantê-lo em
diálogo especialmente íntimo. Percepções de um aroma, de uma imagem ou de
histórias, como as deste livro. Suas palavras dele são correntes que nos levam
e nos trazem a tempos que jamais retornam, mas sempre continuarão lá, à nossa
espera. Mistérios da noite faz esse
papel. Mantém firme a aliança com nossas raízes. É o barco que nos conduz no
rio das lembranças, o álbum de fotografia que nos desvela o passado. Tudo por intermédio
de uma linguagem que nos aproxima e nos protege, assim como faziam nossos pais,
avós e antepassados à beira da cama ou do fogo, nos quartos ou nos
galpões.
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