(Quadro pertencente ao Centro Nativista Gaspar Silveira Martins)
O Dr. Gaspar Martins, nascido em
Aceguá, no lado uruguaio, na estância de seu pai, Carlos Silveira,
matriculou-se na Academia de Direito de São Paulo e, pelas férias, vinha sempre
gozá-las, com a família, no lugar onde nascera...
Naquela época, ainda havia
escravos, e seu pai possuía na estância um mulato que, embora bom campeiro e
trabalhador, lhe dava muitos incômodos. Devido ao bondoso coração de seu amo e
à autonomia de que gozava em suas lides campeiras, não se dava conta de que era
escravo. Era-o, porém, perante a lei. Nascido naquele ambiente onde a liberdade
se respira a largos sorvos, era de uma compleição física admirável, altaneiro e
destemido. “Bom de laço”, domador e boleador, era um perfeito gaúcho.
Carlos Silveira
(Foto gentilmente cedida pelo Jornalista Sidimar Rostan)
O incômodo que dava ao seu senhor
e patrão era que toda vez ia tomar um trago “de cana en la pulperia” (venda-bolicho),
tinha forçadamente de “pelear” com os “castelhanos”. Eram frequentes essas
brigas, que muito desgostavam ao velho Carlos, porque, sendo muito respeitado
pelos uruguaios, procurava corresponder essa atenção vivendo em paz com seus
vizinhos.
O mulato, entretanto, era um
empecilho a esse desejo. Seguidamente o estancieiro recebia queixa do
comissário de polícia, dizendo que o seu peão havia provocado uma luta de que
resultara – “hondos herimientos e largas contuziones”. Sempre que isso sucedia,
o estancieiro mandava vir o mulato à sua presença e admoestava-o asperamente.
Cabeça baixa, chapéu na mão, o
mulato não articulava uma palavra. De certo modo aquela humilde atitude
sensibilizava o senhor, trazendo ao seu julgamento até circunstâncias
atenuantes, como se fossem as de se achar ele sempre só naquelas lutas, além de
não ter certeza de quem teria partido a provocação.
Esses fatos repetiam-se quase
todos os meses. Uma coisa também impressionava o estancieiro... é que, a
julgar-se pela descrição da “queixa”, as lutas deveriam ser muito fortes”...
Mas o mulato jamais trazia delas qualquer vestígio!
Verdade seja que, contando aos
companheiros, no galpão da estância as peripécias dessas brigas, ele arrematava
sempre com as palavras “saí limpo”, no que os outros achavam muita graça.
No Chuí, nossa fronteira próxima
a Jaguarão, morava um compadre e amigo do velho Carlos Silveira – Lycurgo José
de Figueiredo, estancieiro naquele departamento e que, de tempos em tempos, se
o seu compadre por lá não aparecia, ele ia ao Aceguá, passando com o amigo
muitos dias. Em uma dessas ocasiões, dera-se com o mulato um dos costumados
conflitos. Já cansado e, vendo que o mulato não se corrigia, pinta-o em poucas
palavras ao amigo que o visitava, dizendo: “você leva-o para sua estância. É um
bom peão. Ele lá não conhece ninguém e, não tendo inimigos, como por aqui, não
haverá necessidade de andar brigando.” Lycurgo, concorda e, de volta ao Chuí,
levou o mulato em sua companhia.
Já eram passados muitos meses
quando, um belo dia, apresenta-se ele em Aceguá trazendo um bilhete a seu
senhor. Nesse bilhete, Lycurgo dizia que o mulato continuava a ser o mesmo que
era no Aceguá, em constantes brigas com castelhanos e que ele, Lycurgo, não mais
estava disposto a aturá-lo, e por isso, o devolvia.
Nesta ocasião Gaspar Martins
terminava sua estação de férias e aprestavam-se os preparativos de sua viagem a
Pelotas, donde tomaria o vapor que o conduziria a São Paulo. Carlos chama o
filho, mostra-lhe o bilhete do amigo e diz referindo-se ao mulato: “leve-o e
venda-o em São Paulo... Também não posso mais aturá-lo...” Gaspar obedeceu.
Leva-o em sua comitiva e diz-lhe ao chegar a Pelotas: “Amanhã, às 2 horas, vou
tomar o vapor, e quando eu embarcar, quero vê-lo na prancha do vapor, ouviu?
“Sim, senhor”, respondeu o mulato, respeitosamente.
Efetivamente, no dia seguinte,
Silveira acompanhado de poucos amigos, entre os quais um filho do velho Lycurgo
e de alguns colegas, vai tomar o vapor.
Ao embarcar vê o mulato no meio
da prancha, segurando os arreios enfeixados, como é de uso na campanha.
Ali estava todo o seu aviamento
de campeiro, laço, boleadeiras, chilenas de ferro, o rabo de tatu, entre os
pelegos, o facão, e o xiripá. Silveira, vendo-o com aquele volume à mão,
pergunta impensadamente e algo impaciente: “Para que isso?”... O mulato se
surpreende, e comovido, responde:
“Ueé, seor moço?!... Meus
trens!!!"
Silveira encaminha-se para o
vapor. Dirige-se ao comissário e pergunta onde tem papel e tinta. Este
mostra-lhe a escrivaninha de bordo.
Silveira assenta-se e os amigos o
veem redigindo a largos traços qualquer coisa que se parecia com um ofício.
Dobra-o, passa entre os amigos, mostra-o e diz-lhes: “È a sua carta de
liberdade. Homens como esse não se tiram do Rio Grande. Seria para eles um
suicídio”.
Vai até o mulato entrega-lhe o
papel dizendo: “Aqui tens a tua carta de liberdade. És um homem livre, podes
trabalhar onde quiseres...mas não volte para o Aceguá, a fim de não aborrecer meu
pai!”
FONTE:
AZAMBUJA, Bento Martins de. “Recordações
Gaúchas”, Camaquã, Núcleo de Pesquisas Históricas de Camaquã, Reeditado em 2007.
152 p.